Ana Maria nasceu de Jesus para se tornar Anita Garibaldi. Sabe-se pouco sobre seu tempo de menina, interrompido no dia de seu aniversário de 14 anos, na Matriz Santo Antônio dos Anjos “da” Laguna, quando aceitou, resignada, desposar um homem de trinta, com ideais completamente diferentes dos seus. Provinha de uma família humilde com dez filhos, pai tropeiro, mãe costureira. Aninha herdara do pai o gosto pelos cavalos e, desde tenra idade, demonstrou
que estava determinada a tomar as rédeas do seu destino. Com personalidade
forte, “plena de indômitos”, como escreveu Ivo D’Aquino,
que foi membro do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, não se intimidava diante de eventual
importunação, insurgia-se, impunha-se com a energia própria dos destemidos.
A jovem não ignorava
a situação político-econômica do governo monárquico-regencial, com pesada carga
tributária e críticas à administração dos recursos imperiais. Seu tio Antônio,
por simpatizar com o movimento farroupilha, que havia culminado com a
proclamação da República Piratini, no estado vizinho, em 1837, teve sua casa,
em Lages, incendiada.
Em 1839, o movimento
dos farrapos transborda para Laguna, já que o porto da pequena vila permitiria
expandir a revolução a outras províncias. Em 22 de julho, Giuseppe Garibaldi
toma Laguna, no comando do Seival, depois da epopeia náutica iniciada em
Camaquã, que envolveu o transporte inusitado de dois lanchões sobre carretas
puxadas por juntas de bois, ao longo de cem quilômetros.
“O povo foi para as
ruas e os sinos da igreja repicaram quando os farrapos entraram em Laguna”.
Teria Ana Maria festejado a boa-nova? De certeza, sabemos que, passados os dias
de euforia, depara-se com Giuseppe Garibaldi, e ouve dele a frase que
permaneceria na memória do herói como uma sentença inexorável, que só a morte
poderia romper: “tu devi essere mia!”
Ao ser chamada carinhosamente de Anita, não
poderia imaginar que esse encontro fulminante transubstanciaria sua
experiência, selaria um compromisso de amor e também de lutas pelos ideais
republicanos e por justiça social.
Dois meses depois do
arrebatamento, a decidida mulher demove Garibaldi da relutância em levá-la
consigo. Na noite de 20 de outubro de 1839, sobe na escuna Rio Pardo, levando
consigo apenas alguns pertencentes pessoais.
Não tardou para ser
colocada à prova. Em 4 de novembro, durante combate em Imbituba, um balaço de canhão
a fez tombar no convés. Dois marinheiros ao seu lado padeceram. Anita, ensanguentada
demonstrou excepcional bravura. Causou admiração em todos, para orgulho de
Garibaldi, que, “agradecido à providência divina”, registrou, em suas memórias,
a coragem ímpar de sua amada, [.
“Digna da admiração
universal”, o tesouro de Giuseppe, “não menos fervorosa do que [ele] pela
sacrossanta causa do povo”, encarava com bom humor as vicissitudes das
batalhas. Grávida, comandou o transporte de munições entre a retaguarda e as
posições avançadas na batalha de Curitibanos. Feita prisioneira, escapou
corajosamente, em noite tenebrosa, como relatou o Comandante dos Imperiais .
Emboscadas e
círculos de fogo crepitantes não foram suficientes para detê-la. Depois de
marcha ininterrupta por alguns dias, sem comer nem beber, despistou o “maior
caçador dos farrapos”, em Mostardas. Com seu recém-nascido Menotti nos braços,
monta o cavalo, em fuga. A guerra estava perdida, a imagem, eternizada no Gianícolo em Roma..
Em Montevidéu, “Garibaldi
fez Anita sua esposa em 26 de março de 1842”, na Igreja de São Bernardino.
É lá que nossa heroína se revela ao mundo como mãe dedicada e onde nasceram
três de seus filhos, Rosa, Teresa e Ricciotti.
A rua com nome do
padroeiro dos pescadores, São Pedro, abrigou a família.
No Uruguai, a católica Anita
exerceu o ofício de costureira que aprendeu com a mãe, para uma modesta
freguesia. A propósito, Santa
Catarina de Alexandria, é a protetora das costureiras e do Estado de Santa Catarina.
Anita floresceu em plena Guerra Civil do Uruguai. “Modesta e boa
criatura”, sua maior ocupação consistia em divertir os filhos – ela era toda
amores para sua família. Lá, também, a “esplêndida
amazona” despertava a admiração de todos, “cavalgando ao lado do marido, enquanto a banda italiana tocava sua
marcha de regresso” depois de ter cumprido os deveres do dia.
“Incorporada como
enfermeira da Legião Italiana”, passou a cuidar de numerosos feridos na Batalha
de Santo Antônio del Salto
- "anjo providencial"
que já havia se revelado nos combates do planalto catarinense. Dessa vez, ocupava-se como lenitivo para aplacar o luto devastador da morte prematura de sua filha Rosita,
com apenas dois anos de idade, às vésperas do Natal de 1845.
Foi mãe pela quarta
vez, no dia 24 de fevereiro de 1847, quando nasceu Riccioti Garibaldi. Dez meses depois,
Anita embarca com os filhos para a Itália, que fervilhava com o movimento chamado
“risorgimento”, em missão de
“sondagem diplomática”.
Em Gênova, sua
chegada foi celebrada “de modo extraordinário”, quando “mais de três mil pessoas
vieram gritar em frente à casa” onde se instalara.
O mesmo ocorreu, dias depois, em Nice, terra natal de seu marido.
Anita estava ao lado
de Garibaldi, em 1848, quando ele reuniu um corpo de voluntários para libertar a
Itália do domínio austríaco, e juntou-se à luta pela unificação de seu país.
Em sua última
primavera, ela organizou o hospital para os legionários em Rieti.
Para o grande biógrafo da heroína, Wolfgang Ludwig Rau, seu temperamento decidido
e intelecto inato “a capacitavam para acompanhar condignamente os altos voos de
um homem invulgar”.
Ainda em abril de
1849, Anita galopou por Rieti, no que seria, para Rau, “um oportuno preparo
físico” para a Grande Retirada. Volta à Nice para junto de seus filhos – por
pouco tempo, já que então recente República Romana, que havia afastado o Papa do
governo, precisava ser defendida por Garibaldi – “a luta se converteu em uma
das passagens épicas do “Risorgimento”.
A heroína, ao saber
do ataque francês ao Gianícolo, foi ao encontro de seu marido, e o surpreendeu em 27 de junho, na Porta de San
Pancrácio: estava ali a sua Anita, “um soldado a mais”.
Porém, na luta final, “não havia um lugar onde pôr os pés, a não ser sobre o
corpo dos mortos e feridos” - o destino de Roma estava selado.
Anita, vestida como
amazona, e montada em um belo cavalo zaino, marchou com Giuseppe na “retirada”
para os Apeninos. Despistaram os inimigos
com estratégias que até hoje são estudadas nas academias militares – “como nos
pampas da Farroupilha, a cavalaria seria a arma mais ativa”.
Tropas inimigas,
divisões austríacas de milhares de homens, continuaram no encalço dos nossos
heróis.
Companheiros deserdaram a caminho de San Marino. A retaguarda da cavalaria foi
massacrada! Anita, exausta, grávida e febril, tentava comandar os soldados.
Ao chegar na menor e
mais antiga república, a saúde da heroína era crítica, e o refúgio, inseguro. As
condições impostas eram inaceitáveis! Anita, como em Laguna, “forte de
espírito”, demove Garibaldi de deixá-la para trás, a salvo.
A caça do exército austríaco não deu trégua. Nem mesmo a Lua
foi companheira, pois revelou a posição dos legionários esgotados durante a
fuga. Até com água pelo peito, Garibaldi carrega a heroica mulher, em seu
tormento atroz”, que, mesmo destruída
pela febre, sob sol escaldante,
mantinha seu espírito indômito.
Antes de chegar a Mandriole, Anita ainda esboçou um
sorriso feliz, ao saber que o destino poderia reservar segurança ao marido.
Inexplicavelmente, reuniu forças para contar à dona da casa algumas de suas
peripécias e que iria ser mãe novamente. À luz de velas, fez um prece
silenciosa.
Depois de
extenuantes horas, a caminho do abrigo seguro (Fattoria),
Anita já sem cor, sem forças para ficar em pé, com um fio de
voz, pediu água. Garibaldi, zeloso, tirou a espuma
no canto de sua boca. Ao chegar no
destino, um médico constatou a gravidade da situação. Com dificuldade, a
conduziram para o andar superior da edificação.
Ainda na escada, Anita
teve um leve espasmo. Ao acomodá-la no leito, Garibaldi percebeu, incrédulo,
que o coração de seu mais precioso soldado já não pulsava mais. Descansava,
enfim, às dezenove horas e quarenta e cinco minutos, do dia 4 de agosto de 1849,
sua doce, brava e amada companheira, a nossa heroína...
O corpo de Anita foi
enterrado, pronta e descuidadamente, em uma cova rasa, a uns 800 metros da
Fattoria. Havia o "pavor de um
eventual contágio, e o temor de uma eminente surpresa austríaca". Os
despojos foram encontrados por uma menina pastoreira e, então, sepultados no
cemitério da igreja de Mandriole, em 11 de agosto.
O capítulo final da
obra de seu biógrafo Rau é dedicado aos "sete enterros" da heroína.
Seus restos mortais foram enviados para Bolonha, Livorno, Gênova, Nice - terra
natal de seu herói - onde descansou por 72 anos. Novamente exumados em 1931, foram
levados de Nice à Gênova.
"Em apoteose
nacional, foram, finalmente, depositados em Roma, em 2 de junho de 1932, aos
pés do impressionante monumento equestre da heroína, no monte Gianicolo, o qual
fora palco das lutas republicanas de 1849."
|
Retrato de Anita por Gerolamo Induno (1849) |